Vamos falar sobre a perda gestacional? A perspectiva de uma enfermeira

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Falar de Perda Gestacional é falar de um tema muito especial e muito “querido”. Por tudo aquilo que é, o que envolve, o que me dá enquanto Mãe e Enfermeira, por tudo aquilo que ainda falta e urge fazer. Sim, é preciso fazer mais, muito mais!

Ser Enfermeiro é também estar presente em momentos menos felizes e menos bons. Nas maternidades não existem só situações boas e positivas, não nascem só bebés saudáveis, lindos e maravilhosos. Não nascem só bebés de termo…

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É também nas maternidades que surgem situações muito delicadas. Diagnosticam-se mortes in-utero, malformações incompatíveis com a vida, situações de gravidez não evolutiva, de gravidez ectópica, de abortamento espontâneo, trabalho de parto espontâneo antes da viabilidade, entre inúmeras outras situações particulares e delicadas.

Os Enfermeiros são cruciais em todo o processo de Perda Gestacional. Questiono-me, várias vezes, se temos consciência de que marcamos todas as pessoas que se cruzam connosco nos mais pequenos e simples gestos. Muitas das vezes, acho que não. E, com estes casais em particular, falhamos.

“A Perda Gestacional continua silenciada, pouco reconhecida e valorizada.”

Falhamos imenso em aspetos simples, mas que são importantes para os casais. A forma como dizemos, como fazemos, a postura que adotamos, os julgamentos e críticas que fazemos…são, muitas vezes, as queixas dos casais e, não propriamente, o tipo de procedimento ou protocolo que tiveram de seguir.

Enquanto Enfermeira, vivo e lido com casos de Perda Gestacional quase diariamente no serviço onde trabalho. E confesso que não tinha noção dos inúmeros casos que existem de Perda Gestacional, até eu lidar com eles.

A Perda Gestacional continua silenciada, pouco reconhecida e valorizada. É experienciada por muitos casais, mas falada por poucos. 

Ela existe e está presente diariamente em todas as instituições hospitalares. Então, porque é que a mantemos escondida? É preciso falar da Perda Gestacional nas instituições hospitalares! É necessário preparar os Enfermeiros para lidarem com estas situações especiais, formar Enfermeiros mais capazes e mais conscientes de que é preciso marcar a diferença e ser diferente, que os Enfermeiros percebam que cada caso é único e que os cuidados têm que ser diferenciados e personalizados, os Enfermeiros procurarem saber mais sobre aquele caso em questão antes de atenderem os casais. Além disso, é necessário olhar com atenção para as instituições hospitalares e assumir que pouco se faz neste âmbito e que muito pode ser feito…

É urgente mudar o acompanhamento

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Deixemos de atender estes casais junto de grávidas que esperam consultas e ecografias, de fazer consultas de Psicologia para culpabilizar os casais, desvalorizar as suas queixas e necessidades e apenas medicar para que esqueçam aquela dor, deixemos de colocar estes casais no mesmo espaço em que se vivem momentos felizes e nascem bebés, chega de fazer os casais esperar por uma resposta para o caso que estão a vivenciar: sozinhos!  

É urgente mudar o acompanhamento que é dado em todo o processo, e constituir equipas de Profissionais de Saúde que realmente queiram “vestir a camisola” e dar a “cara” por um tema tão especial. É necessário unir forças e trabalhar realmente em equipa. Independentemente do serviço em que trabalhamos, seremos sempre Enfermeiros que acompanhamos casos de Perda Gestacional. A articulação entre os Enfermeiros dos diferentes serviços que acolhem estes casais tem de ser melhorada e otimizada.

Não pode ser mais um caso de Perda Gestacional! Tem de ser o caso daquele casal, o filho daquele casal, as necessidades daquele casal e o bebé em quem depositaram tanto amor e tantos sonhos, quer tenham sido alguns dias ou semanas!

As respostas têm de ser melhoradas e ajustadas. Independentemente do tempo de gestação, a dor é válida, existe e tem de ser confortada.

“Na maioria das vezes, não é preciso dizer nada, mas sim apenas estarmos presentes no silêncio”

Muitas das vezes, os Enfermeiros adotam uma postura de distanciamento e evitamento destes casos ou abordam este tema de forma leviana e pouco empática, porque temem comprometer-se e não querem mostrar-se frágeis por não saberem o que dizer. Não estão preparados para dar resposta. Claro está, que a forma como lidamos com estes casais depende muito da sensibilidade, da empatia, de experiências pessoais e profissionais para lidar com situações difíceis.

Mas, na maioria das vezes, não é preciso dizer nada, mas sim apenas estarmos presentes no silêncio, sermos uma figura de apoio a quem podem recorrer, darmos a mão, um abraço, sermos o colo daqueles casais que estão a vivenciar um momento de vazio e a ultrapassar um solo desconhecido.

Também eu tive e tenho dificuldade em lidar com estes casos pois, na verdade, não há formação de como acompanhar situações de Perda Gestacional. Ninguém me preparou para lidar com estas situações, ninguém se preocupa com a forma como os Enfermeiros se sentem perante os inúmeros casos a que dão resposta… Somos Profissionais de Saúde, mas também somos humanos: eu sou Enfermeira e tenho 2 filhos!

“O bom senso, a empatia, o estar próxima, o colocar-me no lugar do outro, fazem a diferença!”

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Não se investe neste tema, não se fala com Profissionais entendidos, não se faz formação…

Eu, pessoalmente, acabo por me envolver, particularmente, nestas situações de Perda Gestacional. Não preciso dizer muito, raramente digo, mas estou lá. Disponibilizo-me para que partilhem comigo o que quiserem, acolho o que me contam, entendo o sofrimento destes casais sem críticas, sem julgamentos e sem frases feitas.

O bom senso, a empatia, o estar próxima, o colocar-me no lugar do outro, fazem a diferença! Acredito que nos momentos difíceis é importante estar presente, dar colo, validar o que os casais sentem e como sentem. Importa dar aos casais espaço para expressarem a sua dor, partilharem sentimentos, dúvidas e receios, para que se sintam acolhidos e validados.

Durante o internamento, deparo-me com o silêncio dos casais. Vivem o momento muito isolados, muito sozinhos. Não digo muito, mas estou presente e todos recebem o meu abraço apertado. Só quero que saibam que não estão sozinhos, que podem contar comigo sempre. E quando rumam a casa, o meu contacto estará com eles para que me possam enviar uma mensagem em qualquer momento. Eu própria envio mensagem para saber como estão. Ficar 1 mês ou mais à espera de uma consulta no Hospital é, para mim, desumano. Quando mais precisam, estão sós! E o papel do Enfermeiro “morre” ali. Nunca mais vê o casal, nunca mais o apoia…Não pode continuar a ser assim.

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Acredito que a mudança está nas mãos de quem trabalha diretamente nestes locais de contacto com os casais que sofrem estas perdas, e por isso, quando se tem amor à causa e se faz o que se gosta, há uma motivação extra que me faz voar e pensar mais além, sobre todos os constrangimentos e práticas com que me deparo e que tantas vezes me desiludem e me aliciam a baixar os braços.

Eu caminho com os casais que se vão cruzando comigo e com eles já festejo algumas vitórias.

Sou uma Enfermeira de coração cheio com uma gratidão imensa por todos os casais que marcam a minha história.

Sou feliz assim!

FONTE: Rita Cruz – A ENFERMEIRA DA MAMÃ – Amor para Além da Lua

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