Pelo fim da violência obstétrica

Quem se dispõe a ouvir histórias de parto apercebe-se que essas experiências são, frequentemente, muito negativas. Cada vez mais mulheres denunciam o que consideram ser maus-tratos nos seus partos, com descrições de pura violência. Descrevem uma assistência que as despojou de dignidade: foram privadas de acompanhamento da sua escolha, foram alvo de tratamento rude, como se fossem um empecilho, foram alvo de intervenções não consentidas ou foram adiadas intervenções necessárias, viram as suas preferências e solicitações serem ignoradas, foram coagidas, culpabilizadas, ameaçadas e chantageadas, entre muitas outras coisas. Há quem compare aquilo por que passou no parto com uma violação.

Estas situações implicam uma sensação de invisibilidade e um sofrimento atroz. As mulheres relatam consequências negativas duradouras para a sua vida pessoal e laboral, como autoimagem e autoestima negativamente afetadas, assim como a relação com o companheiro ou companheira, o processo de vinculação com a filha ou o filho, o estabelecimento da amamentação, a vida sexual, o rendimento profissional e o funcionamento em sociedade. Há quem decida não ter mais filhos, por lhe parecer insuportável poder passar por tudo outra vez. Podem desenvolver-se quadros clínicos de perturbação de stresse pós-traumático (PSPT) e/ou depressão pós-parto (DPP). Situações de violência no parto também afetam os/as profissionais de saúde que as presenciam, além de que o exercício de violência é muitas vezes fruto da reprodução de episódios de violência que as/os profissionais de saúde sofreram no passado, seja por parte de colegas, mentores, ou mesmo na qualidade de pacientes.

Por que é que um momento que deveria ser de alegria e realização pessoal é tantas vezes um momento de frustração e trauma? As mulheres apontam a qualidade da relação e interação com os profissionais de saúde como fatores fundamentais na avaliação das suas experiências de parto. A sensação de segurança, protagonismo no processo e envolvimento nas decisões são também cruciais. Muito se sacrifica no parto em nome de uma suposta segurança. Mas não há segurança quando a parturiente não se sente num ambiente seguro e acolhedor. Não há cuidados de excelência sem tratamento condigno das utentes e seus acompanhantes por parte dos profissionais. O sistema de cuidados de saúde reflete o sistema social em que se insere. Baseado em múltiplas desigualdades, vai, por sua vez, reproduzir e perpetuar essas desigualdades. É um problema estrutural.

A violência obstétrica não acontece só no parto, embora aí facilmente adquira proporções especialmente significativas, pela importância extrema que um momento dessa natureza tem na vida das pessoas. Os maus-tratos ou desrespeito e abuso no contexto da assistência obstétrica podem acontecer na preconceção, procriação medicamente assistida, gravidez, parto e pós-parto. O reconhecimento de um problema exige a procura de soluções. São múltiplas as vozes que advogam uma mudança de paradigma na assistência obstétrica: um modelo assente em práticas assistenciais atualizadas, segundo as mais recentes evidências científicas; que respeite a integridade e autonomia da mulher ou pessoa grávida, em todos os momentos e circunstâncias; e que se baseie numa relação de colaboração e não de competição entre todos os intervenientes. O parto deixa uma marca indelével em quem por ele passa: que essa marca possa ser de felicidade, satisfação e realização, ao invés de mágoa, sofrimento e revolta, como vemos acontecer, demasiadas vezes.

Fonte: Activa, por Catarina Barata é membro da Direção da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP) e doutoranda em Antropologia no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) com uma tese sobre violência obstétrica

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